Para o relator da CPI da Pandemia, senador Renan Calheiros (MDB-AL), o depoimento de Cristiano Carvalho, vendedor da Davati no Brasil, à CPI nesta quinta-feira (15), prova que houve atuação por parte de gestores do Ministério da Saúde tratando de propina na venda de vacinas. O diagnóstico de Renan foi feito após Carvalho dispor à CPI mensagens que trocou com Roberto Dias, ex-diretor de Logística da pasta, e outros que se envolveram nas negociações. Carvalho entregou perícia técnica de seu telefone à CPI, com diversas mensagens de texto, vídeo e áudio, e descreveu contatos que teve com Dias.
Como vocês vão verificar nas informações e mensagens, nunca entrei em contato com o Ministério. O Ministério é que me procurou através de Roberto Dias. Vou ser sincero com os senhores: fiquei absolutamente incrédulo que um funcionário do Ministério estava entrando em contato comigo, porque não fazia muito sentido. Foi dia 3 de fevereiro, vocês vão ver que houve ligações e mensagens. Retornei para ele por volta das 21h, e ele conversou rapidamente comigo, se apresentou, que ele fazia a contratação das despensas internacionais de vacinas e tal. Fui até checar na internet, porque realmente eu estava achando que era fake news ou coisa que o valha, e verifiquei que realmente era o diretor de Logística — disse Carvalho.
Questionado por Renan se outro negociador da Davati, o PM Luiz Paulo Dominghetti, estaria tratando de propinas com Dias, o representante da Davati respondeu que o policial militar preferiu o termo “comissionamento”.
— A informação que veio a mim não foi “propina”, ele usou “comissionamento”. Se referiu ao comissionamento sendo do grupo do tenente-coronel Marcelo Blanco (ex-assessor de Dias) e da pessoa que o tinha apresentado a Blanco, de nome Odilon — disse.
Carvalho afirmou não saber como Dominghetti se aproximou de Dias, mas revelou que chegou a receber uma ligação de Odilon perguntando quanto ele receberia na negociação, que tratava da venda de 400 milhões de vacinas da AstraZeneca.
— Não sei precisar como Dominghetti chegou ao Dias. Acredito que seja sobre aquele personagem que surgiu na CPI, que é o Odilon, que ele mencionou. Não conheço Odilon, mas uma vez ele me ligou. Entrou em contato comigo, e relatei isso a Dominghetti, perguntando inclusive de comissão. Se eventualmente surgisse uma venda, quanto ele receberia, esse Odilon — revelou Carvalho.
Após as informações, Renan disse que o material e dados disponibilizados por Carvalho comprovariam a tentativa de receber propina por parte de funcionários do governo.
— O mais grave de tudo isso é que ele está comprovando a negociação. Isso é o mais grave, o mais grave.
“Cadeia de comando”
Para o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), as informações apresentadas por Carvalho são “gravíssimas”. Para ele, ficou caracterizada a existência de uma “cadeia criminosa” no Ministério, sobre as quais Carvalho trouxe novos dados.
— Cristiano não está somente falando sobre isso, ele está com prints de WhatsApp, está com documentos, disponibilizando à CPI. Teve negociação com toda a cadeia de transmissão, toda a cadeia de comando do Ministério. Corrupção passiva, o crime está caracterizado. Toda a cadeia de comando da pasta teve contato com a fraude. Pode inclusive ter sido encaminhado um processo de compra de aquisição por um golpe paralelo, por uma ação de golpe paralela à que estava ocorrendo. Mais que isso: as duas intermediadoras, a ONG Senah e o Instituto Força Brasil, tem contato direto com a base de apoio ao governo Bolsonaro. As informações que traz à CPI são esclarecedoras sobre como se comporta o atual governo — disse Randolfe.
Chamou atenção do senador Eduardo Braga (MDB-AM) o fato de a cúpula do Ministério ter negociado a compra de 400 milhões de vacinas com uma pessoa que nem sequer teria um vínculo formal de trabalho com a Davati, atuando como um comissionário.
— Um negócio envolvendo R$ 30 bilhões! Precisamos tipificar que tipo de negociador é ele, e que tipo de negociação é essa — disse Braga, reforçando que, segundo os dados apresentados por Carvalho, fica mais evidente a intermediação do reverendo Amílton Gomes (da ONG Senah) no negócio.
Para o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), chama atenção o fato de o coronel Elcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, ser constantemente citado por envolvidos em negociações suspeitas envolvendo compra de vacinas. Aziz lamentou o fato de Franco, após sair do Ministério, ter sido deslocado para um cargo na presidência da República, junto com o ex-ministro Eduardo Pazuello.
— O que o coronel Franco ainda está fazendo lá ao lado da sala do presidente da República? Ainda está dentro do gabinete do presidente, com o Pazuello. Falando pelo governo e mentindo. Era o único responsável pela tratativa sobre vacina. Que a Davati não tinha uma vacina pra vender nós já sabemos. Agora o que nos espanta, e constrange o governo, é que o coronel Franco ainda está no gabinete do presidente. Sugiro, para o bem do país, que o coronel não possa mais estar na antessala do presidente. Não pode! Você não pode passar a mão em cima de uma pessoa que brincou com a vida das pessoas negociando vacina fantasma, e ainda com um indício muito forte de que houve pedido de benefícios. O mesmo governo não quis comprar a vacina a US$ 10 da Pfizer, mas quis comprar a Covaxin a US$ 15. É essa a questão — disse Omar Aziz.
O senador Humberto Costa (PT-PE) apresentou carta timbrada do Ministério da Saúde confirmando que a ONG Senah era intermediária nas negociações envolvendo a Davati, o que foi confirmado por Carvalho. E a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) também apresentou documentação de acordo com a qual uma outra negociação paralela da Davati ocorria, além da tratada por Carvalho.
— Uma das negociações teria sido uma proposta de 200 milhões de doses da Janssen ao Ministério. Então vejo que é extremamente necessária a convocação dos outros intermediários pra serem ouvidos, sobretudo porque para um deles já há um processo aberto para aquisição desta compra. A gente até precisa ter mais informações, em que pé está esta negociação, se foi efetivada, se algum pagamento foi feito ou se algum empenho foi feito — solicitou Eliziane.
Carvalho afirmou que não lhe chegou nenhuma informação tratando de “comissionamento” endereçado a Elcio Franco. Para ele, o Ministério era dividido em dois grupos.
— Havia dois caminhos dentro do Ministério, aparentemente. Um era via Elcio Franco, e um era via Roberto Dias, e um não sabia do outro. O caminho que ele tentou via Roberto Dias, aparentemente não prosseguiu por conta de algum pedido foi feito lá. Chegou para mim como grupo do Blanco ou grupo do Odilon. Não estava prosseguindo por causa disso. E paralelamente foram falar diretamente com o secretário Franco, através do Instituto Força Brasil, no intuito a meu ver de driblar a resistência por parte do comissionamento. São dois caminhos completamente diferentes. Quando cheguei a Franco através do Força Brasil, percebi que eles desconheciam qualquer tipo de atividade quanto à compra de vacinas pelo Roberto Dias — disse Carvalho.
Compliance
Para o líder do governo, senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), o depoimento de Carvalho deu vazão a mais uma “narrativa falsa” de que teria havido corrupção no governo. Ele ainda fez questão de defender Elcio Franco. Admitiu que os áudios e mensagens trazidos por Carvalho são “constrangedores”, mas o compliance do governo teria funcionado e, segundo Bezerra, nenhum ato corrupto se consumou.
— Manifesto meu desconforto com os diálogos que foram mantidos entre representantes da Davati e servidores públicos ou ex-servidores públicos, numa narrativa em que a gente constata a falta de credenciamento, capacidade técnica, para que a Davati ou seus eventuais representantes pudessem tratar com o governo. Estou realmente constrangido com os diálogos que estão sendo aqui mostrados, mas é importante deixar claro que apesar de todos estes equívocos ou transgressões que possam ter sido praticados, as negociações não foram à frente, não se comprou uma dose de vacina da Davati. Atos praticados por um ou outro servidor não podem ser transferidos ao governo como um todo. Não tinham vacina para vender, nenhuma vacina foi comprada e o coronel Franco barrou a negociação, a fraude — afirmou Fernando Bezerra.
Durante seu depoimento, Carvalho atribuiu a terceiros o fato de ter recebido o auxílio emergencial pago pelo governo no ano passado. Pressionado por Marcos Rogério (DEM-RO), acabou admitindo que pediu o auxílio por conta própria, e que já teria iniciado gestões para devolver o dinheiro que recebeu. Diante da revelação, Marcos Rogério chegou a pedir a prisão de Carvalho, mas não foi atendido por Aziz.
Será que o depoente mentiu só neste caso? Existiu uma coisa muito estranha: a tentativa de golpe ao Ministério e a um conjunto de governos e prefeituras. Quem está dando validade, palco a trambiqueiro, é a CPI da Pandemia, não é o Ministério. O Ministério expurgou esta tentativa de venda do nada, de vacinas nem existentes, nos trâmites de compliance. Lá não teve êxito. O que não avançou um milímetro no Ministério aqui é tratado como “muito importante”. Qual o crime? O que foi contratado? O que foi entregue? O que foi pago? Nada. Ofertou o que não tinha, tentou enganar o Ministério, e agora usa a CPI para criar narrativas. Nenhum centavo foi pago — reclamou Marcos Rogério.
Os senadores Marcos do Val (Podemos-ES), Eduardo Girão (Podemos-CE) e Luís Carlos Heinze (PP-RS) defenderam posições semelhantes, que os mecanismos de compliance funcionaram e nenhum recurso público foi desperdiçado.
Alto escalão
Já a senadora Simone Tebet (MDB-MS) observou que, mesmo sem ter condições de confirmar capacidade fiscal e regularidade jurídica, conseguiu chegar ao mais alto escalão do Ministério da Saúde. Para ela, a CPI revelou uma briga de quadrilhas no âmbito da pasta da Saúde, sendo um grupo de servidores civis e outro de militares.
— Havia um núcleo de agentes políticos e agora um núcleo militar numa briga interna para a compra de vacinas. Mas não no sentido de conseguir vacinas para colocar no braço da população. Mas para fazer qualquer tipo de negociação, de negociata. Tudo nos leva a crer que são brigas de quadrilhas: atravessadores e agentes que queriam vender vacinas sem saber sequer se tinha — disse Simone Tebet, lembrando que o governo Bolsonaro perdeu tempo para comprar vacinas de eficácia reconhecida e de forma direta com os laboratórios.
O senador Rogério Carvalho (PT-SE), por sua vez, apresentou conversa obtida no celular do PM Dominguetti, na qual uma pessoa estaria afirmando que outro dos intermediários da Davati, o reverendo Amilton, chegou a se encontrar com o presidente da República.
— Uma senhora identificada, no celular dele, como Maria Helena Embaixada, do dia 16 de março, confirma que houve esse encontro, ou seja, não temos mais dúvidas disso. Houve o encontro entre o presidente Bolsonaro e o reverendo das armas. Deixa eu mostrar aqui a conversa de Maria Helena. Ela diz: ‘Ontem o reverendo esteve com o presidente’. ‘Sim’, Dominguetti responde. Depois: ‘O problema não é o presidente, mas o Ministério da Saúde, lá é complicado’, responde o Dominguetti. Encontro em que estava combinado para tratar sobre o contrato com a Davati. Então, o presidente estava envolvido, sim, nesta negociata — disse Rogério Carvalho.
Em resposta ao senador Izalci Lucas (PSDB-DF), Cristiano Carvalho afirmou que a proposta da Davati ao Ministério da Saúde originalmente era endereçada ao ex-secretário-executivo Elcio Franco, mas o nome foi substituído pelo do ex-diretor de Logística Roberto Dias. A mudança teria sido um pedido do tenente-coronel Marcelo Blanco, ex-número 2 de Dias no departamento. Naquele momento, Blanco já estava exonerado e atuava como representante de vendas junto ao Ministério, intermediando a negociação com a Davati. Izalci observou que a empresa de Marcelo Blanco foi criada três dias antes do encontro de Roberto Dias com o policial Luiz Paulo Dominguetti.
Carvalho também confirmou ao senador os nomes de duas pessoas que estavam presentes em uma reunião no Ministério com Elcio Franco: Laurício Monteiro Cruz, então diretor de Imunização e Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde, e Hardaleson Araújo de Oliveira, major da Força Aérea que não tinha cargo na pasta.
Comissão de US$ 0,20
Durante o depoimento, Carvalho disse ainda que a Davati receberia uma comissão de US$ 0,20 por vacina vendida ao Ministério, e que todos os envolvidos na negociação receberiam suas partes.
— Como estávamos lá através da Senah, a Senah teria uma participação, acredito que o Instituto Força Brasil teria sua participação também, o Dominguetti teria sua participação, a própria Davati teria sua participação nos Estados Unidos, e eu também teria alguma participação.
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Com informações da Agência Senado
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado