Lideranças indígenas dos povos Kanamari e Kulina denunciaram ao Ministério Público Federal (MPF) um suposto esquema de desvio de verbas públicas e abandono da assistência à saúde indígena na região do Médio Rio Solimões, no interior do Amazonas. A principal acusada é Ercília da Silva Vieira, atual coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Médio Rio Solimões e Afluentes, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, por meio da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena).
A denúncia, a qual O Convergente teve acesso, foi assinada por lideranças e enviada formalmente ao MPF, apontando uma série de irregularidades, entre elas a não execução de obras com recursos já liberados, distribuição irregular de combustíveis a aliados políticos, além de práticas sistemáticas de assédio moral contra servidores da saúde indígena.
“Estamos sendo deixados para morrer. É quase meio milhão desviado e nenhuma UBS construída. Os profissionais que falam a verdade são ameaçados de demissão”, denuncia Celiana Kanamari, presidente da Associação Kanamari da Aldeia Flexeira (AKAF), uma das líderes que assina o documento.
Obras fantasmas e recursos desviados
Segundo os indígenas, em março de 2023, Ercília solicitou oficialmente, por meio da demanda nº 1196/2022, a compra de materiais e equipamentos para a construção e reforma de Unidades Básicas de Saúde Indígena no Polo Base de Eirunepé. Apesar da liberação dos recursos, as obras nunca saíram do papel, denunciam os indígenas.

O documento enviado ao MPF, com fotos anexadas, mostra que no local onde deveria haver uma UBS construída com recursos federais, existe apenas uma choupana – uma espécie de construção improvisada de madeira –, sem nenhuma estrutura adequada.

Além disso, lideranças relatam que vales de combustível estão sendo utilizados de forma política e sem critérios técnicos, abastecendo veículos de aliados da atual gestão do DSEI, o que configura, segundo os denunciantes, abuso de poder político e desvio de finalidade na aplicação de verba pública.
Servidores sob ameaça e denúncias de assédio moral
Ainda conforme o documento, diversos servidores também relataram assédio moral por denunciar a precariedade na região. Os indígenas apontam que profissionais que tentaram relatar a escassez de medicamentos e condições precárias de trabalho foram ameaçados de demissão.
“Se um profissional falava que faltava dipirona, era ameaçado. Por isso muitos se calavam. Além disso, as equipes viajam em botes pequenos, sem segurança, e não conseguem cobrir todas as áreas”, conta Celiana Kulina.

Violação à dignidade
O documento encaminhado ao MPF cita artigos da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) e da Constituição Federal, além de jurisprudência trabalhista que trata do assédio moral como violação à dignidade da pessoa humana e da função pública.
A denúncia pede que o Ministério Público investigue a responsabilidade de Ercília da Silva Vieira por malversação de recursos públicos, abuso de poder político e perseguição institucional a servidores, com possíveis punições que incluem perda de cargo público, suspensão dos direitos políticos e ressarcimento ao erário.
Falta de atendimento, mortes e áreas descobertas
O colapso do sistema de saúde indígena atingiu também indígenas que vivem em áreas urbanas, como os que residem no município de Juruá. De acordo com outro documento ao qual O Convergente teve acesso, mais de 150 indígenas Kulina e Kanamari fizeram um abaixo-assinado no último 14 de junho desde ano, denunciando a falta de atendimento da CASAI (Casa de Saúde Indígena).
Segundo o documento, encaminhado ao procurador Fernando Merloso Soave, do MPF, indígenas que vivem em área urbana estão sendo excluídos da assistência médica por não viverem mais em aldeias.
“O indígena que mora na cidade continua sendo indígena. Isso não pode ser motivo para negar atendimento”, diz o abaixo-assinado.
A comunidade cita como consequência dessa política a morte do indígena Majoro Madija Kulina, e afirma que outros indígenas, como Rohuizi Kulina, estão em estado grave de saúde e sem apoio do sistema.
Atualmente, ainda segundo os indígenas, nenhuma das 19 aldeias Kanamari possui Unidade Básica de Saúde, assim como nas aldeias Kulina. Apenas uma estrutura foi construída, conforme os indígenas, por meio de esforços próprios da comunidade.
“É um verdadeiro descaso”, dizem indígenas
Os indígenas afirmam que a situação da saúde na região “piorou consideravelmente” sob a atual gestão. “A Casai está sempre lotada porque não tem atendimento nas áreas. Quando a equipe vai para uma aldeia, a outra fica descoberta. Não tem medicamentos, não tem barco, não tem estrutura”, relata Celiana Kanamari.
Confira, abaixo, imagens da construção de madeira onde deveria ser a UBS:
A situação das equipes de saúde, conforme relatado, é crítica: profissionais viajam em botes pequenos e inseguros para atender quatro microáreas, com apenas duas equipes disponíveis. O Convergente também teve acesso a imagens da lancha que leva seria a responsável por fazer o transporte da equipe médica e foto do posto de saúde da região.
”Todos estão sem assistência da saúde indígena. A equipe até vai às aldeias sem levar matéria para atendimentos nessas localidades e isso prejudica muito”, declarou Marlene Kulina, coordenadora do Observatório de Políticas Indígenas do Juruá (OPIJU), uma das líderes que assina o documento.
“Todos os seis município da região do Juruá estão sem assistência devida. Pois temos na Calha do Rio Juruá, a cidade de Juruá, Carauari, Itamarati, Eirunepé, Envira e Ipixuna. Em todos as aldeias desses municípios se falam as mesmas coisas, de que não tem remédio algum pelo fato de não levarem, apesar dos vários documentos que já enviamos para Sesai e MPF sobre a situação, não temos retorno de o porquê não chega até às pontas. Os parentes precisam comprar seus remédios, caso estejam passando por algo”, lamentou Marlene.

Outro lado
A reportagem entrou em contato com o Ministério Público Federal para confirmar o recebimento da denúncia, mas não obteve retorno. O órgão é responsável por apurar os fatos, ouvir testemunhas e, caso as irregularidades sejam confirmadas, tomar as medidas legais cabíveis.
Procurada por O Convergente, a coordenação do DSEI Médio Rio Solimões, dirigira por Ercília da Silva, não respondeu aos questionamentos sobre as acusações, mas ponderou que a reportagem deveria entrar em contato com o núcleo de comunicação da SESAI em Brasília para obter respostas.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), por meio do Ministério da Saúde, esclareceu que deve emitir uma nota sobre o caso até terça-feira, 24 de junho. A reportagem deve ser atualizada assim que o posicionamento da pasta for recebido pelo O Convergente.
Confira as denúncias na íntegra:
DENUNCIA ENVIADA AO MPFAbaixo assinado:
ABAIXO ASSINADOPor: Bruno Pacheco
Ilustração: Marcus Reis
Revisão Jurídica: Letícia Barbosa