A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Rosa Weber, lançou nesta quarta-feira (19) a primeira Constituição brasileira traduzida para a língua indígena – o Nheengatu. A cerimônia foi realizada na maloca da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), distante 858 quilômetros de Manaus. A ministra Cármen Lúcia, do STF, a presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), desembargadora Nélia Caminha Jorge, e o corregedor-geral de Justiça do Amazonas, desembargador Jomar Saunders Fernandes, estavam entre as autoridades que participaram da cerimônia.
“Levamos 523 anos para chegar a este momento, que considero histórico”, afirmou durante a solenidade. A ministra afirmou que não falaria como Rosa Weber, mas como Raminah Kanamari, nome indígena com o qual foi batizada no Vale do Javari (AM). E assim, destacou que a partir da Constituição Cidadã, os indígenas passaram a ter seus direitos reconhecidos e não serem mais “meros indivíduos tutelados”. Ela acrescentou que a tradução “é um gesto de valorização e respeito à cultura e à língua indígena”.
A Constituição em Nheengatu foi feita por um grupo de 15 indígenas bilíngues da região do Alto Rio Negro e Médio Tapajós, em promoção ao marco da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) das Nações Unidas. A tradutora Dadá Baniwa disse que foi um trabalho “árduo e desafiador, mas também de muita alegria”.
Inclusão e resgate
A presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), Nélia Caminha Jorge disse que a tradução é um passo significativo na promoção da inclusão e da igualdade, contribuindo para que as comunidades indígenas compreendam plenamente seus direitos e deveres como cidadãos brasileiros. “E mais do que isso, é uma afirmação do nosso compromisso em valorizar a diversidade cultural e garantir que nenhum grupo social seja deixado de lado”, disse a presidente do TJAM. A desembargadora frisou a importância da iniciativa, ressaltando que “as barreiras linguísticas e culturais, muitas vezes segregam e excluem” e que o lançamento da Constituição Federal traduzida para o Nheengatu envia uma mensagem clara: a de que o Sistema de Justiça está comprometido em garantir que todos os cidadãos tenham seus direitos e garantias fundamentais protegidos e respeitados, independentemente de sua língua materna ou origem cultural.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, enalteceu o trabalho feito pelos tradutores em tempo recorde de três semanas, considerando o resultado um “gesto de respeito às tradições indígenas”. Já a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, observou que agora o indígena poderá “conhecer seus direitos em sua própria língua” e que o desafio é incluir as outras línguas indígenas em iniciativas como essa.
Também acompanharam o lançamento da Constituição traduzida os professores especialistas na temática indígena José Ribamar Bessa Freire, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Marco Lucchesi, presidente da Biblioteca Nacional e integrante da Academia Brasileira de Letras. Bessa Freire disse que hoje o Supremo Tribunal retoma essa proposta de resgatar o valor das línguas indígenas, representadas pelo Nheengatu, o tupi guarani moderno. E foi nesse idioma que o presidente da Biblioteca Nacional iniciou seu discurso, convocando todos aqueles a usarem sua voz em prol “da terra, da cultura e da justiça social”.
Identidade de um povo
Ao citar dados do IBGE, a presidente do STF salientou que os cerca de 305 povos indígenas brasileiros são responsáveis pela preservação de 274 línguas. “A língua é muito mais do que um sistema de comunicação. Ela é um componente central da cultura e da identidade de um povo”, afirmou. É a base de valores transmitidos de geração em geração de um povo, “que expressa a visão de mundo, a criatividade e o vínculo coletivo entre uma comunidade”.
Rosa Weber destacou em seu discurso que foi com muita luta, sabedoria e resiliência que as línguas indígenas brasileiras conseguiram sobreviver. Assim, afirma que traduzir a Constituição para um idioma indígena é “um símbolo do nosso compromisso de garantir que todos os povos indígenas tenham acesso à justiça e conhecimento das leis que regem nosso país”, para que possam fortalecer participação na vida política, social, econômica e jurídica.
Observou que reconhecer que o Nheengatu seja utilizado oficialmente na leitura e interpretação da Constituição “é um passo em direção ao fortalecimento e à preservação de todas as demais línguas indígenas”.
Língua Geral Amazônica
Também chamada de Língua Geral Amazônica, o Nheengatu é a única língua descendente do Tupi antigo viva ainda hoje e que permite a comunicação entre comunidades de distintos povos espalhados em toda a região amazônica.
Rosa Weber finalizou seu discurso desejando que seja possível consagrar o que a Constituição brasileira almeja: “construir juntos um Brasil verdadeiramente inclusivo, onde todas as vozes e línguas sejam ouvidas, onde todas as culturas sejam valorizadas e respeitadas, onde todos reconheçam o indispensável papel dos povos indígenas para a preservação do equilíbrio ambiental do planeta e, assim, da vida e do futuro de todos nós”.
Conversa com tradutores e consultores
Antes do lançamento, as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia se reuniram com as 12 lideranças indígenas que fizeram a tradução e os 3 consultores da obra.
A presidente do STF e do CNJ destacou que a intenção da tradução foi dar conhecimento aos povos originários sobre seus direitos. “Somente assim vamos fortalecer nossa unidade e compreender que somos todos Brasil”.
Já a ministra Cármen Lúcia ressaltou que a tradução representa um “passo adiante” na história brasileira. “Espero que seja ensinada a Constituição em cada uma das línguas, que não fique em uma prateleira. Não se reivindica direito que não se conhece. Nosso objetivo é sermos uma sociedade livre, justa, solidária. A Constituição é de todos os brasileiros”.
Protagonistas
Na abertura da conversa, o desembargador Luís Geraldo Lanfredi, juiz auxiliar da Presidência do CNJ e que coordenou o projeto, destacou que os tradutores e consultores foram os protagonistas da tradução. “Trata-se de uma tradução inédita, a primeira do país e o passo inicial de muitas realizações como esta que irão acontecer.”
O indígena Edson Baré, que participou da tradução, destacou que a Constituição traduzida mostra que o STF e o Judiciário ouviram os gritos dos povos indígenas. “Vocês vieram comprovar: o Rio Negro está aqui, estamos vivos, hoje não lutamos com flecha, mas lutamos com dignidade pelo nosso território.”
Lucas Marubo, do povo Marubo, destacou que a tradução em Nheengatu abre precedente para que outros povos tenham os direitos traduzidos em suas línguas. “Momento histórico para os povos indígenas.”
O tradutor George Borari também ressaltou que o trabalho garante a dignidade dos povos originários.
Do povo Kanamari, Inory Kanamari também foi uma das tradutoras. Destacou que foi a primeira indígena de sua etnia na advocacia. “Estamos num país com diversidade imensa e não escuto nossas línguas nos espaços . A gente precisa fazer parte. Antes de sermos indígenas, somos pessoas com direito ao respeito.” Para ela, o texto traduzido reduz o preconceito contra os povos indígenas.
Também na coordenação do projeto, – representante do CNJ Natália Dino destacou que, com a tradução, o Supremo, como guardião da Constituição, ajuda a resgatar o papel relevante dos povos indígenas. “A Constituição é a garantia de direitos, de democracia, de pluralidade. Eu me sinto hoje participando de momento histórico, de reconhecimento, e que seja o primeiro desses vários momentos porque a gente precisa trabalhar por uma Constituição que seja de todos os brasileiros.”
Joenia Wapichana, presidente da Funai, encerrou a roda de conversa destacando que, como representante do Poder Executivo, atuaria para compartilhar o texto traduzido com as comunidades. “Eu quero compartilhar essa responsabilidade. No mundo indígena, somos coletividade. Não é meu, é nosso. Que a Constituição não seja só escrita, mas que seja exercida. Agora, estamos inspirados a fazer a gestão do nosso futuro.”
Lei sancionada
O governador do Amazonas em exercício, Tadeu de Souza, sancionou, nesta quarta-feira (19/07), a Lei Estadual que inclui 16 línguas indígenas como oficiais no Estado, além do português, como o Nheengatu (Língua Geral Indígena), o Tukano e o Baniwa. O ato foi realizado em São Gabriel da Cachoeira (a 852 quilômetros de Manaus), considerada a cidade mais indígena do Brasil.
No evento, sediado na maloca da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), o governador em exercício destacou que as leis sancionadas reconhecem as línguas indígenas faladas no Amazonas como patrimonial e cultural imaterial. Além disso, de acordo com Tadeu de Souza, a medida concretiza o direito constitucional dos povos originários de utilizarem seus idiomas maternos.
“O Amazonas, a partir de hoje, tem 17 línguas oficiais. O português é só uma delas. Imaginem quão cultural, social e pessoalmente mais ricos seremos, lá na frente, quando muitos de nós aqui, ou nossos filhos ou netos, formos capazes de nos comunicar em várias dessas línguas. Haverá uma transmissão de conhecimento que nem sequer conseguimos imaginar aqui e agora. Que esse tempo não demore a chegar”, discursou o governador em exercício.
Após a assinatura, Tadeu de Souza entregou, em mãos, o texto completo da nova lei ao presidente da Foirn, Marivelton Baré; à presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana; ao prefeito de São Gabriel da Cachoeira, Clóvis Moreira Saldanha; à ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara; à presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), Nélia Caminha; e às ministras do STF, Rosa Weber e Carmen Lúcia. O corregedor do TJAM, desembaçador Jomar Fernandes, também esteve presente na solenidade.
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Da Redação
Fotos: Chico Batata / TJAM