O Brasil vem passando por uma turbulência política, nos últimos anos, por conta da polarização entre parlamentares e defensores de partidos de direita, formada por apoiadores do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL), e da esquerda, hoje com a representação da figura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no comando da nação. Polarização essa que chegou em todas as temáticas discutidas nos parlamentos do Brasil afora.
Na Câmara dos Deputados, em Brasília, não está sendo diferente em que Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIs) estão sendo aprovadas, instaladas e realizadas em meio a toda essa conjuntura política. Ao menos quatro dessas CPIs devem movimentar os embates na capital federal nos próximos meses, considerando que elas ocorrem de modo temporário, com datas marcadas para o início e o término, pelo prazo de 120 dias prorrogáveis por mais 60, se aprovada em plenário.
Em específico, uma CPI tem como principais objetivos, dentro deste prazo, investigar fatos de relevância à vida pública e para a ordem constitucional, legal, econômica ou social do País, fazendo apontamentos, escutando autoridades e realizando encaminhamentos ao término da comissão, quando um relatório deve ser entregue com todos os levantamentos e apontamentos feitos no seio de uma CPI.
Entre as comissões instaladas na Câmara dos Deputados, que ocorrem simultaneamente, estão: a CMPI, Comissão Mista Parlamentar de Inquérito, referente aos atos de vandalismo do dia 8 de janeiro, em que prédios públicos foram depredados; a manipulação do resultado de partidas de futebol; a de uma possível fraude financeira na empresa Americanas e a CPI que vai investigar a atuação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no Brasil, CPI esta que pode ser uma verdadeira “batalha de narrativas” entre direitistas e esquerdistas, uma vez que ela já começou bastante acalorada.
No entanto, a questão sobre a instalação de uma CPI para investigar a atuação do movimento é bem mais ampla do que pelo simples fato de investigar os atos do MST. O Portal O Convergente ouviu especialistas para falar, além dessas questões que serão pontuadas na comissão, sobre os conflitos de terra no Brasil, entre eles: o sociólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Luiz Antônio, que fez um contexto histórico deste conflito e o advogado e cientista político, Helso Ribeiro, que pontuou que a maioria das CPIs são feitas para “gerar holofotes”, principalmente para os membros que podem fazer da CPI um “palanque”.
Para Luiz Antônio, o problema é muito maior que apenas o que a CPI quer identificar, citando que grande parte das terras brasileiras foi conquistada à base de violência, expropriação, grilagem, invasão e outras formas, o que permitiu que muitos não tenham quase nada de terras e poucos tenham bastante, o que gera esse conflito ao longo de anos no Brasil.
‘Você pega de todas as terras no Brasil, todas as terras agricultáveis, aquelas terras que não são unidades de conservação, aquelas terras que não são terras indígenas, enfim, todas aquelas terras privadas, 0,8% dos donos dessas terras detêm a metade delas. Vou repetir, menos de 1% dos donos de terra detém a metade de todas essas terras, para ser mais preciso, 49,2% de todas essas terras. Então, como essas terras estão nas mãos desse 1%? Com muita violência, expropriação, invasão, grilagem de terra, falsificação de perfil de beneficiário de processo de destinação de terra pública. Então, você vai ter aquilo que Jessé de Souza diz e outros sociólogos: ‘As elites brasileiras se apropriam da máquina pública para se apropriar do que é público”. Então essas terras chegam às mãos desses grileiros, desses fazendeiros e latifundiários sempre com a participação do estado, estado esse governado por eles. De outro lado, você tem uma população de milhões de brasileiros que atuam, que trabalham nas terras e que não têm terra. Você vê que a maior parte das pessoas que trabalham e produzem alimentos não são donas das terras, não são proprietárias dessas terras”, pontuou o sociólogo.
“Tentativa de criminalização do Movimento”
Por fim, Luiz Antônio também avaliou que esta CPI pode ser uma forma de criminalizar o MST, bem como ocorreu com outros movimentos sociais no país, pelo fato de que eles fazem denúncias sobre a grilagem de terras, o crime, o desmatamento na Amazônia, dentre outras irregularidades. O sociólogo também pontuou que a CPI serve para desviar estes focos
“Dito isto, você tem uma tentativa de criminalização do Movimento Sem Terra, assim como de outros movimentos sociais, por quê? Porque o movimento social, ele denuncia a irresponsabilidade, ele denuncia o crime, a grilagem de terra, ele denuncia a canalhice dos donos do setor rural que financia, para se ter ideia, o setor rural não tem nem 3% da população no Brasil, mas este setor tem 40% do parlamento brasileiro, é um completo desequilíbrio. É uma violação do princípio da representação democrática do parlamento brasileiro. Três por cento da população do campo, do setor produtivo rural, eles têm 40% da bancada federal, daí eles fazem esta CPI para desviar o foco que é, por exemplo, o desmatamento da Amazônia, a grilagem de terras, os privilégios que o setor produtivo chamado agronegócio, exportador de alimentos, exportador de commodity, que não pagam impostos”, comentou o professor da UFAM, Luiz Antônio, afirmando que a CPI também quer pressionar o governo para atender as exigências da bancada ruralista.
“Quando se fala que o setor do agronegócio sustenta o Brasil, isso é mentira, isso é um discurso ideologicamente construído, porque o setor do agronegócio é isento de exportação. Se o agricultor aqui do Amazonas quiser exportar quatro toneladas de cupuaçu ou de castanha, ele vai ter que pagar impostos por isso, sobre estas quatro toneladas, agora, o latifúndio produtivo, que produz a carne, a soja, o milho, o algodão e que exporta, ele tem isenção de impostos. Ele não paga imposto e por que que ele não paga imposto? Porque esse imposto é acolhido por nós, a população brasileira que não vai receber, entende”, finaliza pontuando que esta pressão vem a partir das mudanças feitas pelo atual governo no Ministério do Desenvolvimento, que vai voltar a beneficiar mais os pequenos e médios produtores que os agroexportadores.
“Holofote e palanque político”
Já o cientista político Helso Ribeiro acredita que a CPI do MST, assim como todas as outras já realizadas, pode servir de palanque aos membros, haja vista que, no ano de 2024, haverá eleições municipais no país e que parte destes deputados que compõem uma CPI, independente de qual seja o foco de investigação dela, pode usar dessa estratégia para estar na mídia.
“As CPIs são históricas e existem há mais de três séculos, agora, o que a gente observa é que a grande maioria delas são feitas para gerar holofotes, principalmente para os membros que participam. Esta CPI do MST não é diferente, eu diria que foi uma CPI feita para que, principalmente, opositores do atual governo federal [Lula] conseguissem permanecer na mídia. Então, vão tentar mostrar a ligação do presidente da República com o movimento de invasores e aí você pergunta: pode amenizar ou agravar? Eu acredito que vai interferir em quase nada. Entendeu? Vai ter como todas as CPIs, todas, vai ter palanques, no sentido de atacar os movimentos que clamam por terras, às vezes, eles fazem invasões que é difícil de bater palmas, pelo contrário, a gente tem que questionar de fato, e às vezes, eles fazem reivindicações que é difícil de vaiar, porque é necessário também”, ressaltou Ribeiro.
“Joio e trigo”
Helso Ribeiro também pontuou que a CPI cumpre um papel importante de fiscalizar os atos do Executivo, mas que é necessário separar o “joio do trigo”, haja vista que a grande maioria dos membros desta comissão específica tem mais deputados bolsonaristas do que apoiadores do presidente Lula.
“Então, é uma CPI que se você for ver a maioria dos membros são os “bastiões de sustentação” do governo do presidente Bolsonaro, então você imagina que vai ser um palanque para a oposição, eu vejo dessa forma. E eu digo mais: a função do legislativo é fiscalizar, então que se exerça a fiscalização, isso é sempre bem-vinda, a fiscalização de atos do executivo Enfim, e aí é separar o joio do trigo, ver quem realmente está querendo holofote da mídia e quem está querendo de fato resolver um problema que está sendo colocado”, analisou Ribeiro sobre a questão de instalação desta CPI na Câmara dos Deputados e da verdadeira finalidade a que ela pode alcançar.
Sobre a CPI do MST
A CPI do MST foi instalada, no último dia 17 de maio, e conta com quarenta deputados ruralistas e catorze governistas. A presidência da comissão ficou com o deputado Tenente-coronel Zucco (Republicanos-RS) e a relatoria da comissão ficou por conta do deputado Ricardo Salles (PL-SP), aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Além dos parlamentares, compõem ainda a CPI do MST: Capitão Alden (PL-BA); Caroline de Toni (PL-SC); Delegado Éder Mauro (PL-PA); Domingos Sávio (PL-MG); Coronel Chrisóstomo (PL-RO); Gustavo Gayer (PL-GO); Joaquim Passarinho (PL-PA); Marcos Pollon (PL-MS); Rodolfo Nogueira (PL-MS); Alfredo Gaspar (União- AL); Kim Kataguiri (União-SP); Magda Mofatto (PL-GO); Nicoletti (União-RR); Coronel Assis (União -MT) e Coronel Ulysses (União-AC).
Há ainda a presença dos deputados Rafael Simões (União-MG); Ana Paula Leão (PP-MG); Delegado Fábio Costa (PP-AL); Evair Vieira de Melo (PP-ES); Messias Donato (Republicanos-ES); Diego Garcia (Republicanos-PR); Charles Fernandes (PSD-BA); Delegada Katarina (PSD-SE); Max Lemos (PDT-RJ); Magda Mofatto (Vaga do Patriota, GO); Padre João – (PT-MG); Nilto Tatto (PT-SP); Valmir Assunção (PT-BA); Paulão (PT-AL); Gleisi Hoffmann (PT-PR); João Daniel (PT-SE); Marcon (PT-RS) e Camila Jara (PT-MS).
Agenda da Comissão
Nessa segunda-feira, 29/5, membros da CPI do MST estiveram em Presidente Prudente, no Pontal do Paranapanema, onde, segundo o Movimento, há atualmente 117 assentamentos rurais, com mais de 7.000 famílias em 170 mil hectares.
Dados
Um levantamento divulgado neste mês pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), por meio do “Relatório Conflitos no Campo Brasil 2022”, aponta que só no ano passado ocorreram 1.946 (96,4%) foram cometidas por latifundiários e empresas do agronegócio contra comunidades indígenas, quilombolas e sem terra. Nestes conflitos, 47 pessoas perderam a vida.
Comissão Pastoral da Terra
A Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde a sua criação em 1975, se defronta com os conflitos no campo e o grave problema da violência contra o que se convencionou nomear como trabalhadores e trabalhadoras da terra, termo que engloba diversas categorias camponesas, entre estas comunidades tradicionais, assalariados rurais, indígenas e pescadores/pescadoras artesanais que vivem em espaços rurais e têm no uso da terra e da água seu sistema de sobrevivência e dignidade humana.1 Desde o início também se faz o levantamento de dados sobre as lutas de resistência pela terra, pela defesa e conquista de direitos, e denúncia por diversos meios, sobretudo através do seu Boletim, a violência sofrida pelos povos e comunidades.
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Por Edilânea Souza
Fotos: Divulgação / Ilustração: Marcus Reis
Revisão textual: Vanessa Santos
Colaboração: Luiz Antônio (sociólogo) e Helso Ribeiro (advogado e cientista político)