Por Maurilio Casas Maia
Em certa ocasião, durante audiência de custódia dominical, deparei-me com uma decisão de prisão de ofício por parte da autoridade judicial plantonista contra o “Zé”. Até aqui, “ok”, nada além de mais um debate jurídico com suas aflições e divergências naturais.
Como se espera de um defensor minimamente diligente, impetrei Habeas Corpus pela liberdade de “Zé” junto ao plantão do Tribunal local – cedo, na segunda-feira, um feriado. A resposta veio veloz, algo como a impossibilidade de analisar o pedido de liminar de Habeas Corpus por não existir tempo hábil a ouvir o interveniente Ministério Público, “Custos Iuris” – ou seja, um argumento que inviabilizaria totalmente a justiça tempestiva em muitos casos de plantão. Eis o primeiro corte: “nas pernas” do defensor… Sem tardança, na noite do mesmo feriado, impetrei um Habeas Corpus ao Tribunal Superior. Foi como se eu dissesse a mim mesmo: “preciso dar a defesa que desejaria a mim mesmo – se cair, farei isso atirando”.
O dias de plantão correram tensos… e o caso do sujeito do domingo, o “Zé”, não tinha solução… Até que na quinta-feira da mesma semana, o relator natural do Habeas Corpus resolveu indeferir a liminar por entender pela “gravidade” do fato – exposta ali em abstrato sem elementos concretos; e, também, indeferiu por achar necessário “ouvir” juízo originário e o Ministério Público… Já era então o começo do quinto dia de uma prisão contra entendimento sumulado do Tribunal Superior. Mais uma vez, vi-me entre argumentos neutralizadores da análise tempestiva da Justiça.
Contudo, fim de quinta-feira, quinto dia de prisão indevida, o Tribunal Superior concedeu a liminar de libertação – tão esperada, quanto inusitada. Assim, adequou-se a situação da liberdade ao entendimento do Tribunal Superior. E, confesso, um ânimo idealista de defensor público criminal ressurgiu em mim apesar do cansaço da labuta diária.
Então, vi-me na sexta, penúltimo dia de plantão – feliz por ver o devido processo legal restabelecido. Diligenciei desde cedo para certificar que o Tribunal Superior enviara ao Tribunal local a ordem liminar de Habeas Corpus. Eles foram impecáveis, “zero defeito”. As horas passaram, não vi movimento nos autos. Preocupei-me. Então, diligenciei em múltiplos setores até descobrir, já por volta do horário da audiência de custódia, um grave impedimento tecnológico decorrente de “migração” entre sistemas – estávamos temporariamente “Projudicados” (isso mesmo que você leu).
Em seguida, durante uma das várias audiências de custódia das quais participei, fui comunicado sobre a necessidade de requerer autorização ao desembargador plantonista (sim, seria aquele mesmo para quem, no começo da semana, era imprescindível ouvir o MP para apreciar uma liminar mas que, por ausência de tempo hábil, seria o caso de não analisar a medida em plantão – “cortando-me” as pernas) a fim de que o Juízo de primeiro grau em plantão criminal cumprisse a tão aguardada decisão do Superior Tribunal.
Bem, saio da última audiência de custódia do dia; corro para o notebook; formulo o pedido de autorização para que o desembargador plantonista autorizasse a expedição de alvará com a decisão de medidas cautelares… tento uma primeira ligação ao gabinete sem sucesso na primeira tentativa… Ali, esperei angustiado por volta de uma hora para que o processo fosse apresentado à mesa do desembargador – o que não aconteceu sem antes incomodar pessoas queridas para alertar sobre o descumprimento involuntário da decisão superior.
Após, aguardei, aguardei… os minutos pareciam horas… até que desta vez, no lugar das pernas, “perdi” cabeça… A nova decisão do desembargador não autorizou o atuar do juiz plantonista para cumprir o provimento do Tribunal Superior sob argumento de que ele somente poderia fazê-lo se existisse um “novo” pedido da defesa pendente (como se a defesa não tivesse ido até a capital para o Tribunal Superior corrigir a ordem das coisas…); mas, por outro lado, sobre a pendência de efetivação da ordem liberatória do Tribunal Superior, nada o desembargador faria ou disse… Para mim, a mensagem que ficou, no fim da sexta-feira, foi de total desconsideração pela decisão emanada pelo Tribunal Superior e, mais grave ainda, de profundo desprezo por mais um dia de prisão indevida de “Zé”…
Nestes dias, nos pedidos por Justiça, perdi as “pernas”, perdi a “cabeça” e agora perdi meu sono… me pus a escrever. Percebi que o desembargador plantonista foi o “Procusto” da semana jurídica: não importaria o tamanho do argumento e o tamanho da biblioteca ao “leito” jurídico, a “cama” da justiça, pois aquele “lugar” sempre traria os mesmos resultados nefastos aos pedidos do pobre necessitado “Zé”, um distante “homo sacer” aos olhos da autoridade. Ou, talvez, eu realmente tenha sido relapso com meu requerimento de autorização e ainda inapto em meus argumentos em um quadro difícil lembrado por Bertolt Brecht: “Alguns juízes são absolutamente incorruptíveis. Ninguém consegue induzi-los a fazer justiça“.
Contudo, depois de tanta luta, não posso encerrar a história nessa tragédia à justiça. Até mesmo porque eu já havia recuperado as “pernas” com a decisão do Tribunal Superior, mas ainda era preciso recuperar a “cabeça” perdida na mais recente visita ao leito de “Procusto”…
Assim, para meu lado mais idealista de “defensor dos necessitados”, a sorte foi encontrar lá longe, na capital, um ministro-julgador e sua equipe (pre)ocupados com o acesso à justiça do desvalidos; e, aqui, na noite de sexta-feira, o olhar sóbrio de duas mulheres para o caso: uma, a mesma juíza que teve a decisão originalmente impugnada por mim; e, a outra, aquela demandada a cumprir a ordem superior, mas impedida pelo problema de sistema. Na ocasião, veio da primeira juíza citada a solução para contornar os problemas e garantir o direito conferido pelo Tribunal Superior e, da segunda juíza, já no “calar” da noite, veio a ordem processual para dar cumprimento à liberdade devida ao “Zé”.
Bem, eu também sou professor de Direito há mais de 15 anos e, quando aquela semana começara, eu jamais imaginaria que me encontraria com esses personagens – um “Procusto” e duas “Têmis”; Desse modo, tais figuras passariam a ilustrar exemplos em sala de aula sobre reflexões éticas de acesso à justiça – na melhor linha de Kim Economides e sua 4ª onda de acesso à justiça.
É… “Procusto” deve estar agora dormindo o seu justo sono, pouco sabendo sobre Tribunal Superior e qualquer prisão ilegal de um tal “seu Zé”; e duvido que ele esteja preocupado com isso – talvez esteja até com a sensação de dever cumprido às vésperas do fim do seu plantão. Por outro lado, até agora há pouco, as duas “Têmis” buscaram soluções para o entrave e eu as vi esgotarem suas energias em meio a outros afazeres, de mães e trabalhadoras, para solucionar a “novela” de “Zé” e o Tribunal Superior.
Assim, se “Procusto” me levou as “pernas” e a “cabeça”, o ministro-julgador do Tribunal Superior e as duas “Têmis” amazônicas me tiraram das mãos infernais de Hades; devolveram-me a esperança de poder convergir e divergir; vencer e perder; não conformar, recorrer e até mesmo aceitar, se for o caso, pois “ainda há juízes em Berlim”, aliás, “ainda há juízes aqui e bem ali” – “apesar de você”, Procusto.
Quem é Maurilio Casas Maia?
Pós-doutor em “Direito Processual” (PPGD-UFES) e em “Direito e Sociedade” (UniLaSalle/Canoas- RS). Doutor em Direito Constitucional (UNIFOR). Mestre em Ciências Jurídicas (UFPB). Pós- graduado em “Direitos Civil e Processual Civil” e em “Direito Público: Constitucional e Administrativo” (CIESA). Professor de Direito Processual Civil (UFAM) e defensor público (DP-AM). Líder do grupo de pesquisa Direito da Proteção dos Vulneráveis e Sistema de Justiça (PPGD- UFAM).