Escrito por Erica Lima
Com anistia ou sem anistia, o fato é: cada caso é um caso, e cada história precisa ser vista como um fato singular. As manifestações da extrema-direita bolsonarista que pedem a anistia aos presos do 8 de janeiro, e as da extrema-esquerda lulista que pedem o endurecimento contra todos sem exceção, revelam muito mais sobre nós como sociedade do que sobre os indivíduos em si.
No dia 8 de janeiro de 2023, não houve apenas um ato de vandalismo. Houve uma tentativa de golpe, orquestrada, planejada e executada com a participação de setores da política e das Forças Armadas, movidos por interesses egoístas. Mas também houve a presença de milhares de pessoas comuns, massa de manobra, muitas delas fragilizadas, algumas com saúde mental comprometida, incapazes de dimensionar a gravidade do que faziam.
O ciclo da história e o enfraquecimento coletivo
A história é cíclica. Ela se repete, mas com roupagens diferentes. Napoleão Bonaparte já dizia que a guerra não é feita apenas com armas, mas com estratégias. E as estratégias de hoje não estão nos campos de batalha, mas nas redes sociais, nos algoritmos, nas fake news e no discurso fácil que divide, fragiliza e enfraquece.
Direita e esquerda, em seus extremos, perderam algo essencial: a coletividade. A direita, pelo discurso seco e generalista que trata todos como iguais. A esquerda, pelo discurso do amor e da união que não se concretiza na prática, incapaz de olhar para os irmãos que caíram em contradição. E assim, por falta de compaixão de um lado e de responsabilidade do outro, cresce o centro político, não por ser virtuoso, mas por ser fruto do desespero de uma sociedade individualizada.
Filosofia e política: quem somos nós nesse espelho?
Norberto Bobbio definiu esquerda e direita como campos divididos pela ideia de igualdade: a esquerda busca diminuí-la, a direita a aceita como natural. Mas, ao longo do tempo, surge o centro, sustentado mais pelo pragmatismo e pela descrença do que por um ideal.
Montesquieu já alertava que todo poder precisa de freio e contrapeso, mas nossos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário têm falhado em representar e agir. Rousseau lembraria que tudo depende dos contratos que firmamos, e no Brasil, o contrato social foi rasgado e reescrito em favor de poucos. O Leviatã de Hobbes cresce, mas não em favor da ordem coletiva: cresce como monstro que devora os frágeis e protege os poderosos.
Vivemos, como diria Bauman, numa sociedade líquida em que tudo se desfaz. Os valores escorrem pelas mãos, os conceitos se perdem e restam apenas preconceitos.
A história que toca pessoalmente
Falo não apenas como analista, mas como alguém que recebeu, na madrugada do dia 8, um vídeo e um áudio de uma ex-aluna, assistente social, mãe de duas adolescentes, esposa de um militar. Ela estava lá. Foi presa. É culpada, sim, e deve responder por isso.
Mas sua pena não poderia ser também convertida em serviço ao Estado, em educação cívica, em trabalho social? Quantos perfis como o dela não poderiam ressarcir a sociedade de forma mais democrática e transformadora do que simplesmente por meio do encarceramento?
Foucault, em Vigiar e Punir, já questionava: punimos para quê? Para educar? Ressarcir? Ou apenas para manter o controle?
Contradições e desigualdade na justiça
O Brasil, infelizmente, não julga de forma igual. Uns recebem doações milionárias, campanhas de pix coletivo, advogados renomados. Outros, sequer têm defesa. Uns se tornam mártires, outros desaparecem no sistema prisional. Essa contradição é a maior humilhação da nossa história: em pleno século XXI, com inteligência artificial, internet e globalização, continuamos retrocedendo para práticas de ódio, exclusão e injustiça.
O que nos resta: amor e responsabilidade
Se fosse para citar as Escrituras, lembraria: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu único Filho.” Se fosse para citar o espiritismo ou o candomblé, diria que tudo o que fazemos retorna. Mas em todas as crenças, há um ponto em comum: a necessidade do amor verdadeiro. Não o amor espetacularizado em redes sociais, mas o amor invisível, discreto, que varre ruas, que cuida de doentes, que abraça os que choram sem precisar de uma câmera.
É disso que o Brasil precisa: amor e responsabilidade. Reconhecer cada pessoa não pelo poder que ostenta, mas pela humanidade que carrega. E compreender, acima de tudo, que cada caso é um fato, único, irrepetível e digno de julgamento justo.
E se você leu este texto e não conseguiu sentir, independente de ideologia, saiba: você já está morto como ser humano e não se percebeu.
Quem é Érica Lima?
Érica Lima é mestre em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia (Fiocruz Amazônia/UFAM), jornalista com registro profissional (DRT), apresentadora do Debate Político em parceria com a Rede Onda Digital (canal 8.2), diretora-executiva do portal O Convergente e escritora associada à AJEB/AM.
Mais do que títulos, carrega a missão de comunicar onde o silêncio impera nos rincões de uma Amazônia muitas vezes tratada como margem, mas que é centro de vida, de luta e de saber. Atua onde a estrada não chega, construindo pontes entre dados e vozes, entre o invisível e o essencial. Fomenta o protagonismo de mulheres que, mesmo sem diplomas, são catedráticas da vida e estrategistas na arte de viver.
Com expertise em pesquisa qualitativa eleitoral, desvela percepções, desvenda territórios simbólicos e transforma escutas em leitura crítica do presente político.
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