Em uma cidade às margens do Rio Amazonas, dois jovens itacoatiarenses mostram que o empreendedorismo local vai muito além de abrir um negócio — é também sobre herança, propósito e resistência. Ian Fernandes e Joquebelde Braga, mais conhecida como Jock, transformaram dons familiares em sustento, e hoje comandam, cada um à sua maneira, espaços que são referências de cuidado, estilo e identidade em Itacoatiara.
Na rua tranquila do bairro Colônia, em Itacoatiara, o som das máquinas de cortar cabelo se mistura às conversas animadas e risadas de clientes que, mais do que um corte, buscam ali um espaço de pertencimento. Esse lugar é a Caverna Barbearia, comandada por Ian Fernandes, de 27 anos — um jovem que encontrou na tesoura, no espelho e na memória da mãe o caminho para construir seu futuro.
O sonho começou com um presente simples, mas carregado de significado: sua primeira máquina de cortar cabelo, dada pela mãe quando ele tinha apenas 16 anos. “Quando eu terminei o Ensino Médio, não sabia o que fazer e, desde os meus 12 a 13 anos, por incentivo da minha mãe, que foi minha grande inspiração, eu comecei a cortar cabelo. Meu irmão era minha ‘cobaia’ e eu fui treinando”, lembrou.
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A mãe, que foi cabeleireira na cidade, plantou a semente do ofício no filho. Ela era quem dava conselhos e toques de como fazer um bom corte de cabelo. Ian, à sua maneira, aprendia cada dia mais e se orgulhava de cada passo dado. O jovem, de cabelo encaracolados, mesmo em meio à timidez em falar com o público, mostrou força de vontade e foi conquistando clientes.
Junto com a família, Ian vive em uma casa cujo quintal é o Rio Amazonas, o maior do mundo. Da residência do jovem, uma passarela com degraus ladeira abaixo dá acesso às águas volumosas e profundas e à um ponto onde atracam embarcações, carregando consigo passageiros de comunidades do interior da cidade.

E foi nesses passageiros que Ian viu na necessidade a oportunidade. O jovem lembra que, na época, ele queria recursos para comprar uma peça de skate e poder treinar manobras com os amigos, mas precisava de dinheiro.
“Aqui onde moramos passam sempre muitas pessoas do interior, que chegam de barco e sobem a escadaria ao lado da nossa casa. E os meus tios acabavam me anunciando e falando que eu cortava cabelo. Essas pessoas que são mais humildes, me aceitaram e me acolheram. Eles foram meus primeiros clientes fixos, pois a cada 15 dias ou de mês em mês, eles retornavam, mesmo que na época eu atendesse em casa, no meu quarto”, disse.

Ian, contudo, relembra que ele queria se especializar. Em 2015, ao concluir os estudos em Itacoatiara, ele partiu para Manaus em busca de aprendizado. Passou um período desafiador trabalhando em uma barbearia no centro da capital, experiência que o amadureceu e o fez entender que o retorno para casa não significaria retrocesso, e sim a chance de recomeçar com identidade própria.
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“Eu não tinha essa ideia de ser barbeiro. Foi algo que foi acontecendo. Depois que eu me formei, meu pai perdeu o emprego e o movimento no salão da minha mãe ficou fraco e eu precisava me virar. Quando comecei a cortar o cabelo das pessoas que vinham do interior, eu ficava com receio por não ter nenhum curso. Minha mãe, ao saber disso, falou com um amigo barbeiro em Manaus, que me ajudou a me profissionalizar”, afirmou.

“Fui para Manaus e comecei a treinar. Mas já no segundo dia, deixei o pente da máquina cair e acabei errando o corte. O dono do salão logo viu e conseguiu reverter. Deu tudo certo. Já no terceiro dia, o proprietário do espaço deixou eu ficar sozinho atendendo os clientes. Foi um sufoco, mas acabei conseguindo. Isso, para mim, foi uma virada de chave, pois ali eu soube que conseguiria tocar minha própria barbearia”.
Empreendedorismo jovem
Em maio de 2015, nascia a Caverna Barbearia. O espaço era modesto — um cômodo cedido pela avó — e o futuro, incerto. “Inicialmente, eu ficava com receio, com medo de falarem de mim, por eu ser homem e cortar cabelo. Mas eu segui com meu trabalho. A demanda crescia, e eu precisava me especializar e na época não tinha curso de barbeiro, só de cabeleireiro”, conta ele.
E foi o que ele fez. Entre um atendimento e outro, Ian buscava técnicas novas, observava tendências, se conectava com outros profissionais. O que antes era um serviço simples, virou experiência completa de cuidado e estilo.

Somente em 2016, Ian fez seu primeiro curso de barbearia e pôde se aperfeiçoar ainda mais. Mas não parou por aí, a cada ano o jovem, que hoje emprega mais cinco profissionais, participa de oficinas, workshops e cursos voltados para a beleza e estética. Um desses eventos foi a Beauty Fair, a maior feira de beleza das Américas, em São Paulo.
Hoje, a Caverna Barbearia é referência local — um espaço onde jovens se inspiram, homens encontram autoestima e histórias são compartilhadas entre cortes e risadas. E a trajetória de Ian não é apenas sobre estética. É sobre herança, coragem e reinvenção. É sobre um jovem da Amazônia que, com as próprias mãos, esculpiu um futuro melhor — não só para si, mas para toda uma comunidade.

“Hoje, eu acho que não faria outra coisa. Até porque, a barbearia ajuda seis famílias e isso é um incentivo a mais para continuar. E claro, a minha. Quando meus pais não puderam, eu pude ajudar em casa, meu irmão que era universitário. E atualmente não é somente mais um corte, a gente ajuda na aparência e autoestima. No início, eu tinha receio de gostar dessa profissão, não sabia que era para mim, mas eu percebi que tudo o que eu tenho, a moto, a roupa, as cadeiras aconchegantes, o espaço com ar-condicionado, é por conta desse trabalho”, relembrou Ian, com orgulho da trajetória

Ela também pode
Mas Ian não é o único jovem que transformou um dom em ferramenta de vida. Na mesma Itacoatiara que viu nascer a Caverna Barbearia, a empresária Joquebelde Braga — conhecida por todos como Jock — construiu, entre boletos, prateleiras e batons, um verdadeiro refúgio de beleza, autoestima e persistência.
Aos 34 anos, ela comanda a Jock Makeup e Acessórios, uma loja que é, ao mesmo tempo, vitrine de produtos e espelho de sua própria história.
“Comecei a vender ainda na escola. Levava os catálogos de uma tia que vendia maquiagem e oferecia pras colegas e até pros professores. Era uma forma de ajudar em casa e, claro, conquistar minha própria independência”, relembra Jock, com aquele sorriso de quem carrega orgulho e superação na mesma medida.

Filha mais velha e única mulher entre três irmãos, Jock cresceu em um lar simples, onde o pai, mecânico, era o provedor principal, e a mãe enfrentava uma severa depressão pós-parto após o nascimento do filho caçula. Foi nesse contexto de instabilidade emocional e financeira que ela se viu, ainda adolescente, tomando para si responsabilidades de gente grande. “Eu aprendi a me virar cedo. Tinha que resolver muita coisa sozinha. Minhas tias me ajudaram muito e foram elas que me inspiraram a empreender”, conta.
A própria loja em Itacoatiara
Com o tempo, as vendas escolares viraram plano de vida. Aos 18, já com um filho nos braços, decidiu que queria mais. Começou vendendo produtos por catálogo — Natura, Boticário — e, aos poucos, passou a se interessar por maquiagem. “Quando chegou aquela febre dos batons líquidos, principalmente o batom preto, eu fui atrás das marcas, queria estar à frente”, diz.
Mesmo trabalhando em outra empresa, Jock não desistiu da ideia de ter sua própria loja. E foi durante a gestação da filha caçula que tomou coragem. “Eu dizia: uma hora vai ser o momento certo. Quando ela nasceu, resolvi abrir a loja, mesmo no meio da pandemia.”
O início foi tenso, lembra. Medo de fechar, de não dar conta, de ver tudo ruir. Mas, em vez disso, Jock se reinventou: apostou nas vendas online, criou grupos de WhatsApp, aprendeu a gravar vídeos e a divulgar seus produtos no Instagram. “Não tinha muita noção de marketing, usava até foto da internet no começo, mas fui aprendendo tudo sozinha.”
A primeira loja física era pequena. Depois, por conta da necessidade do dono do imóvel, precisou sair. Foi quando encontrou o espaço atual, na Rua Borba. “Não era planejado, mas foi onde tudo se encaixou. Eu ia desistir, mas respirei fundo e fui atrás de outro lugar. A mudança me fortaleceu.”

Hoje, a Jock Makeup e Acessórios é um dos espaços mais completos de estética e beleza da cidade, com produtos selecionados para maquiagem, skincare, unhas, cílios e acessórios femininos. Além disso, o atendimento é personalizado, e cada cliente recebe orientações precisas — fruto do conhecimento que Jock adquiriu ao se formar em Estética e Cosmética pelo Senac.
“Fazer a faculdade foi um divisor de águas. Eu já entendia de maquiagem, mas não sabia tanto sobre pele, composição de produtos, skincare. Agora monto rotinas personalizadas pras minhas clientes, explico direitinho o que usar, quando e como. E elas voltam contando que funcionou, que melhorou a pele. Isso é gratificante.”

Jock também se prepara para mais um passo: abrir um segundo ponto, desta vez próprio, onde quer incluir serviços de estética com profissionais da área. “Já tive colegas que atendiam comigo, mas hoje prefiro focar na loja. Não dá pra abraçar tudo, né? Então quero estruturar e trazer outras meninas pra atuar nessa parte.”

O que começou com uma caixa de catálogo e um caderno de anotações, virou referência em beleza e empreendedorismo local. E o nome da loja? Surgiu da clientela. “No grupo de vendas, ninguém chamava pelo nome oficial, só falavam: ‘comprou na Jock’. Então ficou Jock mesmo. E pegou.”
A história de Jock é sobre coragem, reinvenção e propósito. Uma mulher que, em meio às dores da maternidade vividas de perto, transformou o cuidado com os outros em negócio — e, mais do que isso, em vocação.
“É desafiador, sim. Mas se você sabe onde quer chegar, você traça uma meta e vai. Um degrau por vez”, aconselha. “Não vai cair do céu. É estudar, testar, errar e continuar. O segredo é não parar.”

MEIs
Ian e Jock fazem parte dos mais de 15,6 milhões dos Microempreendedores Individuais (MEIs) do Brasil e representam a garra e a coragem do amazonense no mundo dos negócios. Além disso, eles integram um seleto grupo de profissionais que buscam, por meio da especialização, aperfeiçoar ainda mais o atendimento.
Vale lembrar que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado no ano passado, mostra que em 2022 o Amazonas registrou 147.236 de MEIs, o maior crescimento anual na série histórica de 14 anos, com 30.464 novas filiações. Ao todo, são mais de 160 mil registrados no Estado. Desse montante, 92.955 são comandados por homens (58%) e 67.415 (42%) por mulheres.
O crescimento vem sendo apontado por relatórios técnicos, como o divulgado em 2023 pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) , que também registrou um aumento de 62,2% no número de pequenos negócios abertos no Amazonas no período de 2019 a 2022, contabilizando empresas de Microempreendedor Individual (MEI), Microempreendedor (ME) e Empresa de Pequeno Porte (EPP).
Itacoatiara
Gerente de Escritório Regional do Sebrae Itacoatiara, Jady Ferreira destaca que o órgão acompanha de perto a realidade dos MEIs e dos pequenos empresários nos municípios do interior. “O Sebrae hoje apoia o microempreendedor a formalizar sua empresa, a fazer a declaração do MEI. Itacoatiara já tem mais de 2 mil MEIs formalizados. Sabemos que ainda há muitos autônomos que não se formalizam por medo ou falta de informação, e nosso papel é orientar e mostrar os benefícios disso”, explica.
Jady lembra que o Sebrae Itacoatiara oferece muito mais do que a formalização: há oficinas, palestras, programas de capacitação e acompanhamento contínuo dos empreendedores. “Fazemos consultorias de inovação, cursos voltados para esses empresários e até levamos eles para participar de grandes feiras como a Beauty Fair, em São Paulo. Ali, eles veem tendências, fazem contatos e voltam com outra visão de mercado”, destaca.
Além disso, o Sebrae atua em Itacoatiara e em outros cinco municípios da região: Silves, Itapiranga, São Sebastião do Uatumã, Urucará e Urucurituba. Jady reforça que o suporte se estende também às Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP), que recebem orientações sobre acesso ao crédito, regularização de dívidas e estratégias de crescimento. “Nosso objetivo é garantir que esses negócios continuem ativos, inovando e gerando emprego e renda nas cidades onde atuam.”
Para quem pensa em empreender ou precisa de apoio para manter seu negócio em pé, o Sebrae tem sido mais do que um parceiro — é uma ponte entre o sonho e a realização. Histórias como as de Ian e Jock mostram que, com incentivo, capacitação e muito trabalho, é possível transformar talentos em trajetórias de sucesso.
Essa mesma transformação também passa pelo trabalho desenvolvido pelo Senac no município
A gerente da Unidade do Senac Itacoatiara, Songe Barros, lembra com orgulho da trajetória de Ian, ex-aluno da instituição na área da beleza. “O Ian foi nosso aluno no curso de cabeleireiro. Ele se destacou, abriu seu próprio negócio como barbeiro, e depois voltou ao Senac para compartilhar sua experiência com outros alunos, já como palestrante. Em 2024, foi reconhecido com o prêmio Senac Premium como profissional de excelência. Nada mais justo do que reconhecer um aluno que hoje é parceiro, exemplo de superação e empreendedorismo”, afirmou.
Songe, que está há 15 anos no Senac e possui mais de duas décadas no Sistema S, reforça que a missão do Senac é preparar profissionais qualificados para o mercado de trabalho local. “Transformar vidas é a essência do nosso trabalho. Muitas empresas nos procuram em busca de profissionais capacitados e o nosso papel é garantir essa formação de qualidade. O Senac existe para isso: transformar a realidade das pessoas por meio da educação profissional.”
Segundo ela, a meta da unidade para 2025 é atingir 5 mil atendimentos, entre cursos pagos e gratuitos. “Trabalhamos com gratuidade para mais de 60% dos cursos ofertados, graças ao repasse compulsório do comércio. Isso nos permite oferecer formação de excelência em diversas áreas como beleza, gastronomia, informática, gestão, comércio e saúde, a um número expressivo de pessoas. Estamos aqui para dar oportunidade a quem muitas vezes não teria acesso à educação profissional.”
Diego Macedo, coordenador da Faculdade Senac Itacoatiara, acrescenta que o trabalho vai além da qualificação técnica — envolve a formação cidadã e empreendedora. “A missão do Senac é educar para o trabalho no comércio de bens, serviços e turismo. Isso significa que preparamos pessoas para empreender, liderar, inovar e transformar seus territórios. O caso da Jock, por exemplo, mostra bem isso: ela começou vendendo cosméticos e decidiu buscar uma formação superior para entender melhor o produto que oferecia aos clientes. Entrou no curso de Estética e Cosmética e passou a oferecer um atendimento muito mais profissional e seguro.”

Diego lembra que Itacoatiara foi a primeira cidade do interior do Amazonas a receber uma faculdade Senac, em 2020 — um marco importante na descentralização da educação superior de qualidade. “Desde então, já ofertamos cursos como Processos Gerenciais, Logística, Estética e Cosmética, e agora Gestão Portuária, pensado justamente para atender às demandas da cidade, que tem forte vocação portuária. Estamos com vestibular aberto para o segundo semestre e, ainda este ano, implantamos o curso de Análise e Desenvolvimento de Sistemas (ADS), fortalecendo a atuação na área de tecnologia.”
Ele destaca que muitos alunos saem dos cursos superiores prontos para abrir seus próprios negócios ou melhorar empreendimentos que já possuem. “O curso de Processos Gerenciais, por exemplo, oferece base sólida em administração, marketing, empreendedorismo e gestão de pessoas. Isso dá ferramentas práticas e teóricas para o aluno planejar, executar e sustentar seu negócio com mais segurança.”
Além da faculdade, o Senac Itacoatiara oferece cursos técnicos e profissionalizantes de curta e média duração, com foco em empregabilidade e inserção rápida no mercado. “Estamos aqui para dar ferramentas às pessoas. É isso que transforma vidas. E é muito bonito ver isso acontecer de verdade — quando o ex-aluno vira parceiro, quando a pequena empreendedora se torna referência. São histórias como essas que mostram o impacto real do nosso trabalho em Itacoatiara e em toda a região”, finalizou Diego.
Redes sociais
Para conhecer o trabalho de Ian Fernandes, basta acessar o Instagram da barbearia: [@cavernabarbearia1](https://instagram.com/cavernabarbearia1). Para acompanhar o trabalho da Jock e conhecer os produtos da loja, basta visitar o perfil [@jockmakeup](https://instagram.com/jockmakeup).
Conheça mais sobre a história de Ian:
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Por: Bruno Pacheco
Ilustração: Marcus Reis
Revisão Jurídica: Letícia Barbosa