Segunda, 15 de setembro de 2025. Humaitá amanheceu sob sirenes, bombas de gás e o estalo dos disparos. Moradores narram medo dentro de casa, janelas fechadas, crianças chorando, olhos inchados e lacrimejantes, uma rotina de guerra no coração do sul do Amazonas. Vídeos e reportagens locais dão conta do confronto em áreas urbanas enquanto a Polícia Federal (PF), com apoio de órgãos ambientais, mira dragas e balsas do garimpo no Rio Madeira. “Virou zona de guerra”, descreveu a imprensa regional, registrando uso de bombas de gás e pânico nas ruas segundo o Portal Manaós.
A assessoria de comunicação da PF, em notas recentes sobre operações na bacia do Madeira, afirma que as ações repressivas se concentram em dragas, balsas e demais aparatos usados na extração ilegal, por crimes ambientais e usurpação de bens da União, normalmente em coordenação com Ibama, Força Nacional e ICMBio. É o padrão que se observa nos comunicados oficiais sobre o Madeira desde 2024 e 2025.
O retrato imediato: o que está acontecendo hoje
- Operação em curso: veículos locais reportam confronto e gás lacrimogêneo na área urbana; vídeos mostram correria e desespero conforme o Portal Manaós.
- Alvo: dragas e balsas no Rio Madeira, padrão adotado pela PF em fases anteriores na região.
- Escalada prévia: o sul do Amazonas já vinha em tensão com alertas do MPF para destruir mais de 500 dragas no Madeira entre AM e RO (recomendação de agosto).
Por que parte da população defende o garimpo
Em Humaitá, não é novidade ver parte expressiva da comunidade defender o garimpo como “motor” local, argumento que reaparece sempre que o Estado chega de helicóptero, mas não de políticas públicas. Os relatos desta manhã conforme denúncias e vídeos publicados na internet, revelam medo, bombas, correria de quem convivem com o discurso de que “sem garimpo, não há dinheiro circulando”. A imprensa local registrou, em outras ocasiões, até a mobilização de garimpeiros para enfrentar operações, acirrando o clima.
O pano de fundo é um vácuo de políticas públicas: infraestrutura precária, isolamento rodoviário intermitente (BR-319), serviços frágeis e oportunidades escassas. A BR-319, eixo vital de ligação com Porto Velho e Manaus, segue entre promessas e licenças, sintetizando a crônica de uma integração que nunca chega.
O custo invisível do ouro: meio ambiente e saúde
O garimpo, sobretudo fluvial, empurra lama e mercúrio para a correnteza e o mercúrio retorna pela panela. Estudos nacionais e internacionais apontam contaminação elevada em peixes da bacia do Madeira, com níveis que chegam a dobrar o aceitável para consumo humano; peixes forrageiros (base da cadeia alimentar) já trazem sinal de alerta. O dano é cumulativo, silencioso e atravessa gerações: gestantes e crianças são as mais vulneráveis.
A Fiocruz apresentou neste ano novos resultados sobre o “Impacto do mercúrio em áreas protegidas e povos da Amazônia”, reforçando o nexo entre garimpo e exposição humana inclusive com achados preocupantes entre gestantes em territórios amazônicos. A Convenção de Minamata, que o Brasil promulgou em 2018, reconhece formalmente o risco e exige reduzir emissões e uso do metal, segundo fonte da Fiotec.
Do lado ambiental, o garimpo se expande colado à água: 77% das áreas de garimpo na Amazônia estão a menos de 500 metros de cursos d’água, acelerando a degradação de margens e ictiofauna. Em 2023, a área garimpada alcançou 246 mil hectares no país, com a Amazônia concentrando a imensa maioria, conforme MapBiomas Brasil
O que diz a lei (e por que ela importa, inclusive para o garimpeiro)
A extração de minério sem título é crime ambiental (art. 55 da Lei 9.605/1998) e usurpação de bens da União (art. 2º da Lei 8.176/1991). A primeira prevê detenção de 6 meses a 1 ano e multa; a segunda, de 1 a 5 anos e multa. Como as condutas se somam, a jurisprudência admite concurso de crimes. No campo administrativo, há multas e destruição/inutilização de equipamentos. E, desde Minamata, o país assumiu compromissos adicionais para reduzir o mercúrio.
Humaitá, contratos e o Estado que não chega
Quando a economia local depende do garimpo, é sinal de que o poder público falhou em diversificar a base produtiva. E há indícios de desgoverno que pioram tudo: reportagens do O Convergente mostram o prefeito multado pelo TCE-AM e obrigado a devolver R$ 1,4 milhão por ausência de prestação de contas; e a Câmara Municipal na mira do TCE por omissão de dados no Portal da Transparência. Transparência frágil significa menos controle social, e mais espaço para que a ilegalidade se imponha como “solução econômica” de acordo com O Convergente.
Saídas que colocam gente no centro (e tiram o mercúrio do prato)
1) Proteger civis agora. Protocolos públicos de comunicação em tempo real durante operações (mapa de perímetros, rotas de evacuação, horários), abrigos temporários e atendimento de saúde de urgência (oftálmico e respiratório) nos bairros afetados. Isso é básico em “operações de alto risco”, e deve ser cobrado de todos os entes envolvidos. (As operações multiórgãos na Amazônia são a regra; que também o seja a proteção da população.)
2) Transparência e controle local. Cumprir e fazer cumprir as regras de transparência do município e do Legislativo de Humaitá, com auditorias independentes e conselhos comunitários monitorando contratos e prioridades. Sem isso, a promessa de alternativa econômica vira pó.
3) Renda, transição e formalização real. Programas de transição econômica para trabalhadores do garimpo (qualificação, microcrédito, reconversão produtiva) e, onde couber e for legal, formalização rigorosa com tecnologia limpa, rastreabilidade e zona de exclusão nas cabeceiras e áreas sensíveis, diretrizes debatidas por economistas e ambientalistas (CPI/PUC-Rio, Amazônia 2030).
4) Bioeconomia de verdade, não de slide. Investimento em cadeias da sociobiodiversidade (castanha, açaí, piscicultura sustentável, manejo florestal, turismo de base comunitária), com infraestrutura, logística e crédito, linhas já propostas por Imazon, Embrapa e WRI.
5) Madeira sem mercúrio. Monitoramento contínuo de água, peixes e sedimentos no Rio Madeira (UEA iniciou esforço de larga escala), com alertas públicos de consumo de pescado por espécie e período do ano, para que o peixe volte a ser alimento, não risco.
6) Política de Estado na segurança. A presença integrada (PF, Força Nacional, Ibama, ICMBio, Funai) precisa andar com pacto social local e especialmente em áreas Tenharim e Marmelos, onde o próprio governo já autorizou reforço de segurança. Reprimir o crime e evitar que a cidade vire campo de batalha não são objetivos contraditórios.
Humaitá conhece, há décadas, o preço do abandono: quando o Estado falha em planejar a economia e proteger vidas, o ouro fácil parece solução, até que a conta chega pelo ar, pela água e pelo prato. Hoje, entre bombas e choro, o recado ecoa: sem transparência, sem alternativas econômicas e sem protocolo para proteger civis, quem paga a conta é o povo. E esse povo já paga caro demais.
Fontes principais usadas no texto: Portal Manaós (cobertura em 15/09), notas da PF sobre operações no Madeira (2024–2025), estudos Fiocruz/UEA/WHO sobre mercúrio, MapBiomas/Imazon/CPI-Amazônia 2030 sobre impactos e caminhos, e reportagens do O Convergente sobre transparência e contas públicas em Humaitá. (Portal Manaós)
Quem é Érica Lima?
Érica Lima é mestre em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia (Fiocruz Amazônia/UFAM), jornalista com registro profissional (DRT), apresentadora do Debate Político em parceria com a Rede Onda Digital (canal 8.2), diretora-executiva do portal O Convergente e escritora associada à AJEB/AM.
Mais do que títulos, carrega a missão de comunicar onde o silêncio impera nos rincões de uma Amazônia muitas vezes tratada como margem, mas que é centro de vida, de luta e de saber. Atua onde a estrada não chega, construindo pontes entre dados e vozes, entre o invisível e o essencial. Fomenta o protagonismo de mulheres que, mesmo sem diplomas, são catedráticas da vida e estrategistas na arte de viver.
Com expertise em pesquisa qualitativa eleitoral, desvela percepções, desvenda territórios simbólicos e transforma escutas em leitura crítica do presente político.