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quinta-feira, julho 31, 2025

Prove que eu devo te salvar: a caneta que pesou mais que 60 socos

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Por Erica Lima
No silêncio da sala gelada da delegacia, a cena parecia um quadro que jamais deveria existir.
Uma mulher, desfigurada, o rosto inchado, hematomas transformando sua pele em um mapa de dor, mal conseguia sustentar o próprio corpo na cadeira. Não podia falar. Cada músculo implorava por descanso. Mas a lei exigia que ela comprovasse, de próprio punho, que havia sido vítima.
Com a mão trêmula, segurando uma caneta como quem agarra um último fio de dignidade, ela escreveu. Escreveu entre lágrimas e sangue seco. Cada letra parecia mais pesada que os 60 socos que recebeu dentro de um elevador em Natal. O protocolo era claro: para que o crime existisse no papel, a vítima precisava narrar o horror, mesmo quando já estava no limite da sobrevivência.
Aquela imagem me atravessou. Senti revolta, vergonha e humilhação como cidadã. Porque ali estava exposta, em sua forma mais crua, a face desumana de um sistema que espanca duas vezes: primeiro, pelas mãos do agressor; depois, pela burocracia que exige força de quem já não tem mais nada.
O caso que escancarou o absurdo
O agressor tem nome: Igor Eduardo Pereira Cabral, 29 anos, ex-jogador de basquete.
A vítima, Juliana Garcia dos Santos, 35 anos, foi atacada dentro de um elevador em um condomínio de Ponta Negra, em Natal (RN), no dia 26 de julho.
As câmeras de segurança registraram o horror: mais de 60 socos em menos de dois minutos. Juliana caiu, tentou se proteger, mas foi espancada de forma sistemática, sem piedade. O caso é investigado como tentativa de feminicídio, e Igor está preso preventivamente.
Mesmo desfigurada, ela precisou escrever seu depoimento à mão. O protocolo não foi feito para quem sangra.
O perfil do agressor
Homens como Igor carregam um roteiro previsível, que especialistas em violência de gênero conhecem bem:
•Ciúmes obsessivo e controle sobre redes sociais e amizades.
•Agressões verbais e humilhações frequentes.
•Histórico de violência prévia, naturalizado ou minimizado pela vítima.
•Escalada rápida da violência, quando a mulher tenta impor limites ou sair do relacionamento.
A filósofa Simone de Beauvoir já dizia: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. O patriarcado opera assim: normalizando o ciúme, silenciando o grito e burocratizando a dor.
A violência institucional que espanca junto
Quando o Estado exige da vítima um depoimento manuscrito, ele pratica uma violência institucional. A lógica parece ser: “Se você sobreviveu, prove”.
Precisamos de um sistema que acolha primeiro e documente depois, que permita depoimentos por vídeo, assinaturas digitais e laudos médicos automáticos em casos de impossibilidade física de fala.
É impossível não sentir frustração: quantas mulheres deixam de denunciar porque sabem que enfrentarão um segundo suplício na delegacia?
A lei e as consequências
•Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006): garante medidas protetivas, atendimento especializado e afastamento do agressor.
•Feminicídio (Lei 13.104/2015): homicídio motivado por gênero, com pena de 12 a 30 anos; tentativa também é enquadrada com agravante.
•A prisão preventiva de Igor foi decretada, e o caso segue como tentativa de feminicídio.
Mas a legislação, sem mudanças no atendimento, ainda exige que mulheres sobrevivam também à burocracia.
Como buscar ajuda no Amazonas
1.Emergência: ligue 190 ou Disque 180 (Central de Atendimento à Mulher).
2.Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs):
•Manaus: DEAM 1 (Cachoeirinha) e DEAM 2 (Cidade de Deus).
3.Saúde física e mental:
•HUGV, Hospital 28 de Agosto e SPA Danilo Corrêa recebem vítimas com prioridade.
•Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e CRAS/CREAS oferecem acompanhamento psicológico e social.
4.Apoio jurídico e social:
•Casa Abrigo Antônia Nascimento Priante e Centro de Referência de Atendimento à Mulher oferecem acolhimento temporário e apoio psicossocial.
Como mudar o sistema
1.Depoimento audiovisual imediato quando a vítima não puder escrever ou falar.
2.Protocolo humanizado, com psicólogos e assistentes sociais em todos os plantões.
3.Acesso digital à denúncia, permitindo confirmação posterior da vítima.
4.Acompanhamento psicológico contínuo pelo SUS e maior integração com o Judiciário.
Porque cada minuto gasto com burocracia é um minuto que afasta a justiça da vida real.
A imagem de Juliana segurando uma caneta, enquanto sua voz era o silêncio da dor, é o retrato do Brasil que ainda falha em proteger suas mulheres.
Não é só sobre espancamento. É sobre o país que olha para uma vítima quase morta e diz: “Prove que eu devo te salvar”.

Quem é Érica Lima?

Érica Lima é mestre em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia (Fiocruz Amazônia/UFAM), jornalista com registro profissional (DRT), apresentadora do Debate Político em parceria com a Rede Onda Digital (canal 8.2), diretora-executiva do portal O Convergente e escritora associada à AJEB/AM.

Mais do que títulos, carrega a missão de comunicar onde o silêncio impera nos rincões de uma Amazônia muitas vezes tratada como margem, mas que é centro de vida, de luta e de saber. Atua onde a estrada não chega, construindo pontes entre dados e vozes, entre o invisível e o essencial. Fomenta o protagonismo de mulheres que, mesmo sem diplomas, são catedráticas da vida e estrategistas na arte de viver.

Com expertise em pesquisa qualitativa eleitoral, desvela percepções, desvenda territórios simbólicos e transforma escutas em leitura crítica do presente político.

Insiste em caminhar entre rios, narrativas e resistências, acreditando que a política, quando atravessada pela escuta e pela palavra, é também poesia que transforma realidades.

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