Crônica Política por Érica Lima
No coração verde do planeta, onde a floresta ainda sussurra em línguas ancestrais, repousam 62 mundos distintos, os municípios do Amazonas. De leste a oeste, de norte a sul, há um país escondido dentro de um Estado: vasto, encharcado, multiétnico, e frequentemente esquecido. Como medir sua realidade? Como entender, sem apagar, o que pulsa em cada beira de rio, em cada aldeia, comunidade quilombola, vicinal ou zona urbana abandonada?
É por isso que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) não é apenas um número: é uma lupa. E é dela que precisamos para lançar luz sobre realidades diversas que ainda vivem nas sombras das estatísticas rasas.
Elaborado pelo PNUD, em parceria com o IPEA e a Fundação João Pinheiro, o IDH é uma bússola que aponta onde a vida escapa dos direitos básicos como saúde, educação, renda, moradia. Mas no Amazonas, é preciso mais do que planilhas. É preciso calha por calha, povo por povo, município por município. Porque aqui, onde a BR-319 é uma promessa fantasma há décadas, o isolamento define o ritmo das urgências.
A estrada não veio, e então vieram os rios. Eles são caminho, mas também obstáculo. Na seca, o fundo do leito vira muralha. Na cheia, a água invade as casas e leva o pouco que resta. A travessia é lenta, cara, cansativa. A temperatura beira os 40 graus, o combustível encarece, o alimento encurta. E enquanto isso, crianças vão à escola em canoas, se houver escola. Mulheres aguardam atendimento de saúde que vem por barco, se vier. Jovens sonham com empregos que não atravessam as águas.
Mas não estamos falando de um vazio. Estamos falando de presença ancestral. O Amazonas é o estado com maior preservação das etnias originárias do mundo. De acordo com estudos da Fiocruz (IOC e ILMD), povos como os Tukano, Baniwa, Tikuna, Yanomami, Sateré-Mawé, Baré, Dessana, Maku, Kanamari, Hixkaryana, Marubo, Mura, Munduruku, Kokama, Apurinã, Kambeba, Korubo, Deni, Katukina, Mayoruna, Kaxinawá, Kulina, Tariano, entre outros, habitam os quatro cantos desse imenso território. São guardiões da floresta, da memória e da resistência. Suas aldeias estão espalhadas por São Gabriel da Cachoeira, Tabatinga, Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Barcelos, Tefé, Lábrea, Humaitá, e tantos outros pontos no mapa onde raramente chega o poder público, mas onde pulsa uma sabedoria ancestral ignorada nos gabinetes.
Esses povos e comunidades não são obstáculos ao desenvolvimento. Eles são parte essencial do que o desenvolvimento deveria proteger.
Por isso, conhecer o IDH de cada um dos 62 municípios não é um capricho técnico, é um gesto de justiça. Como estão os indicadores de saúde em Pauini? Como é a educação em Jutaí? Qual é o grau de ocupação e moradia digna em Ipixuna? Como vivem as mulheres em Tapauá? Quais os sonhos dos jovens de Codajás?
Sem esse diagnóstico real, seguimos reféns do achismo. Seguimos amarrados à desinformação que transforma pobreza em culpa individual e ignora os séculos de negligência institucional.
O ano de 2026 se aproxima. Um novo ciclo eleitoral virá. E com ele, promessas, alianças, narrativas apressadas. Mas um povo só escolhe com dignidade quando tem acesso à informação qualificada. O IDH é uma arma silenciosa, não para atacar, mas para esclarecer. Para dar nome àquilo que muitos preferem manter invisível.
A política pública só chega onde o olhar alcança. E por isso, precisamos abrir bem os olhos. Colocar a lupa sobre os dados. Ouvir os mapas. Sentir os rios. Decifrar os silêncios. Porque não há desenvolvimento verdadeiro sem enxergar, de fato, o que somos e o quanto ainda nos falta para sermos um Estado justo para todos.
E que fique o alerta: sem dados, não há democracia. E sem democracia, o futuro nos escapa como um barco solto na correnteza.
Quem é Érica Lima?
Érica Lima é mestre em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia (Fiocruz Amazônia/UFAM), jornalista com registro profissional (DRT), apresentadora do Debate Político em parceria com a Rede Onda Digital (canal 8.2), diretora-executiva do portal O Convergente e escritora associada à AJEB/AM.
Mais do que títulos, carrega a missão de comunicar onde o silêncio impera nos rincões de uma Amazônia muitas vezes tratada como margem, mas que é centro de vida, de luta e de saber. Atua onde a estrada não chega, construindo pontes entre dados e vozes, entre o invisível e o essencial. Fomenta o protagonismo de mulheres que, mesmo sem diplomas, são catedráticas da vida e estrategistas na arte de viver.
Com expertise em pesquisa qualitativa eleitoral, desvela percepções, desvenda territórios simbólicos e transforma escutas em leitura crítica do presente político.
Insiste em caminhar entre rios, narrativas e resistências, acreditando que a política, quando atravessada pela escuta e pela palavra, é também poesia que transforma realidades
Informações sobre abreviaturas
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
O PNUD (UNDP em inglês) é o órgão das Nações Unidas responsável por promover o desenvolvimento humano sustentável em escala global. Atua em mais de 170 países com foco em erradicação da pobreza, redução das desigualdades, fortalecimento da governança democrática, proteção ambiental e resposta às mudanças climáticas. No Brasil, o PNUD é o principal parceiro internacional na elaboração do IDH Municipal, fornecendo a metodologia e o referencial conceitual para medir indicadores como educação, renda e longevidade da população.
Endereço (Brasília):
Casa das Nações Unidas – Complexo Sérgio Vieira de Mello
Setor de Embaixadas Norte, Quadra 802, Conjunto C, Lote 17
CEP 70800-922, Brasília – DF. Telefone: +55 61 3038-9300. E-mail (Imprensa): [email protected]
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
O IPEA é um órgão vinculado ao Ministério do Planejamento e Orçamento do Brasil, criado em 1964. Atua como centro de pesquisa e produção de conhecimento sobre políticas públicas, economia, desenvolvimento regional e social.
E-mail: Presidência: [email protected] Comunicação: [email protected]
SIC: [email protected]
A Fundação João Pinheiro é uma instituição pública vinculada ao Governo de Minas Gerais, referência nacional na área de estatísticas socioeconômicas, planejamento e avaliação de políticas públicas. Ela é responsável por processar e aplicar a metodologia do IDH em nível municipal no Brasil, junto com o PNUD e o IPEA, garantindo a confiabilidade dos dados e a adaptação das métricas internacionais à realidade brasileira.