Em tempos de conectividade ilimitada, é paradoxal perceber o quanto a informação, esse bem essencial à democracia, pode ser manipulada, distorcida e transformada em arma de controle e confusão. No Amazonas, um estado com mais de 4,2 milhões de habitantes espalhados entre florestas densas, rios extensos e comunidades de difícil acesso, o impacto da desinformação é mais do que político: é estrutural, social e humano.
Quando a mentira chega mais rápido que a lancha
A Amazônia Legal é marcada por uma geografia complexa, com municípios que só se conectam por avião ou via fluvial. A ausência de infraestrutura básica, como a pavimentação da BR-319, única rodovia que liga Manaus ao restante do país por terra, cria um cenário de isolamento não só físico, mas também informacional. Em regiões onde o rádio ainda é soberano e o acesso à internet é precário, o WhatsApp se torna a principal fonte de “notícia”. E é justamente por esses grupos que a mentira se propaga com força.
Segundo dados do IBGE de 2024, mais de 61% dos domicílios do interior do Amazonas enfrentam algum tipo de limitação de acesso digital. Isso significa que a checagem de fatos, o jornalismo profissional e as fontes confiáveis na maioria das vezes e propositalmente não ocorrem, enquanto boatos, correntes de desinformação e manipulações ganham terreno fértil.
O voto guiado pela desinformação
Nas Eleições Municipais de 2024, o Amazonas contabilizou cerca de 2,75 milhões de eleitores aptos a votar, segundo o TRE-AM. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) recebeu, em todo o país, mais de 5.250 denúncias formais de fake news apenas entre junho e outubro daquele ano. A maioria envolvia manipulação da imagem de candidatos, distorções sobre propostas e campanhas orquestradas de desinformação, muitas delas disparadas via grupos de WhatsApp e perfis automatizados em redes sociais.
É nesse cenário que o voto consciente se vê ameaçado. Em comunidades onde o acesso à informação de qualidade é restrito, um vídeo adulterado ou uma manchete sensacionalista pode ser a única fonte de “informação” que o eleitor terá antes de decidir seu voto. E isso tem um preço alto: a legitimidade da escolha popular e a capacidade do povo de decidir seu próprio destino.
Entre a floresta e o feed
A floresta amazônica, com sua rica biodiversidade e sua importância para o equilíbrio climático global, é também o pano de fundo de uma crise social marcada pela ausência de políticas públicas e pela negligência histórica. O isolamento de comunidades ribeirinhas e indígenas não é apenas geográfico: é também informativo.
Quando não se tem estrada, não se tem conectividade e informação. Quando não se tem conexão, não se tem escolha. E é aí que a desinformação faz morada, silenciosa, sorrateira e eficaz. Uma mentira repetida mil vezes em um grupo de WhatsApp pode ser mais poderosa do que uma verdade publicada em um portal jornalístico com credibilidade.
O jornalismo como escudo contra a mentira
Instituições como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e a Repórteres Sem Fronteiras vêm alertando sobre o crescimento da desinformação e os ataques sistemáticos à imprensa. No Amazonas, portais de notícias com credibilidade existem e exercem papel crucial na resistência informativa, mas enfrentam o desafio de competir um com o imediatismo das redes sociais, onde a checagem é quase sempre ignorada em nome da “viralização”.
E o que tudo isso tem a ver com a BR-319? Tudo.
A ausência da BR-319 como ligação terrestre funcional entre Manaus e Porto Velho não é apenas um gargalo logístico. É um fator que agrava a exclusão econômica, a carestia nos preços dos alimentos, o acesso precário à saúde e à educação e, claro, a desinformação. Quanto mais isolada estiver a população, mais vulnerável ela estará às mentiras que circulam como verdades absolutas.
Conclusão: o Amazonas precisa de estrada, mas também de verdade
O combate à fake news no Amazonas passa por muitas frentes: educação midiática, valorização do jornalismo, acesso à internet de qualidade e, sim, infraestrutura física. A informação confiável tem que alcançar a população com a mesma velocidade com que a mentira se espalha. E isso só será possível quando os direitos básicos, inclusive o direito à verdade, forem garantidos de ponta a ponta, seja nos igarapés de Tefé, nas margens do Solimões, nos bairros de Manaus ou nos ramais de Manacapuru.
Porque uma democracia saudável não se constrói apenas com urnas eletrônicas, mas com uma população bem-informada, crítica e conectada com a realidade, e não com boatos.
Por Erica Lima – Diretora Executiva do site O Convergente
Érica Lima é diretora executiva do portal de notícias O Convergente e apresentadora do programa Debate Político, transmitido pelo canal 8.2 da Rede Onda Digital e pelo canal do YouTube @oconvergente. É mestre em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia e especialista em Pesquisa Eleitoral e Análise do Discurso. Atuou como colaboradora em projetos de pesquisa na Fiocruz e no Ministério da Saúde, com expertise consolidada no trabalho com comunidades ribeirinhas e indígenas. Integra a Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil – seção Amazonas (AJEB-AM) e possui mais de uma década de experiência, incluindo atuação como professora de nível superior.