O Brasil ainda possui traços escravistas muito mais fortes do que imaginávamos e a situação ocorrida em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, deixa isso bem evidente. A questão que se coloca é: quais são as consequências jurídicas para os envolvidos?
A Constituição Federal de 1988 possui como princípio fundamental, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e, apesar de não prever a imprescritibilidade do trabalho escravo, estabelece a desapropriação confisco, também chamada de expropriação, como forma de punição aos “senhores de engenho” modernos. Significa que, conforme o art. 243 da Carta Magna, a propriedade onde for constatada a exploração de trabalho escravo será expropriada e destinada à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização para o proprietário.
Na mesma esteira, o Código Penal tipifica a conduta de Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, em seu artigo 149, senão vejamos:
Redução à condição análoga à de escravo
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
- 1oNas mesmas penas incorre quem
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Percebe-se que a conduta abrange situações nas quais o trabalhador é submetido a trabalhos forçados, condições degradantes, jornadas exaustivas, cerceamento de liberdade, mediante apropriação indevida de documentos ou objetos pessoais ou cerceamento de uso de qualquer meio de transporte.
Dentre as ferramentas de combate ao trabalho escravo, no âmbito do Governo Federal estão as fiscalizações e inspeções do trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego. Se as vítimas forem estrangeiras, existem mecanismos que concedem autorização de residência para vítimas de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória, previstos na Lei de Migração ( Lei n.º 13.445/2017), cuja autorização é requerida ao Ministério da Justiça e Segurança Pública:
Art. 30. A residência poderá ser autorizada, mediante registro, ao imigrante, ao residente fronteiriço ou ao visitante que se enquadre em uma das seguintes hipóteses:
II – a pessoa:
- g) tenha sido vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória;
Além desses, também temos a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM, principal órgão de fiscalização de mão de obra escrava no Brasil, bem como as Unidades Regionais e parcerias, todas coordenadas pela Auditoria-Federal do Trabalho.
Participam das operações a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, esclarecendo que, nesses casos, a competência para julgar os crimes praticados é da Justiça Federal.
As denúncias podem ser feitas para todos os órgãos competentes, em especial para o Ministério do Trabalho e Emprego pelo Sistema Ipê, de forma remota e sigilosa (https://ipe.sit.trabalho.gov.br/).
Por outro lado, o Brasil foi o primeiro país condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos (OEA). Como no caso da Fazenda Brasil Verde, um caso chocante que ocorreu no Sul do Pará. Infelizmente muitos casos ficaram parados e acabaram prescrevendo violando assim os direitos humanos de inúmeras vítimas.
Diante disso, parece-me que a nossa realidade está longe de mudar. No caso de Bento Gonçalves, desejo que cada vítima tenha uma reparação razoável e proporcional ao sofrimento vivido e que a justiça puna, de maneira firme, os envolvidos.
Por fim, vale lembrar o trecho do hino do Rio Grande do Sul: Um povo sem virtude termina por ser escravizado, mas aparentemente um povo sem virtude também escraviza, e escraviza muita gente.
Por Christian Rocha – Jurista e ativista dos Direitos Humanos.
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